sábado, 9 de fevereiro de 2008

TIO HARRY - O RELÓGIO

Transcrevo do meu querido Titio Harry, a sua alma se derretendo de poesia, quando fala do relógio da casa do seu pai (Vovô Paizinho). Este relógio atualmente está na casa de Julião, (meu irmão, sobrinho e companheiro de Marçonaria de Titio Harry ) badalando em todas as horas do dia e com todas as suas peças, ainda originais).
Núbia, SSA – 22/08/07

“ Juazeiro do Norte, 12 de setembro de 1973

Trigésimo aniversário do nosso Relógio Ansonia.

Escravo fiel e mudo, que nada exige, nada reclama, nem solicita para bem servir, senão que lhe estiquem os seus tendões flexíveis de suas cordas, impulsionando a engrenagem de suas peças, para subdivisão do tempo, de meia em meia hora, em constante badalar.

Nasceste escravo, sem que tivesses o direito às vantagens da Lei Áurea de 13 de Maio de 1888.

Vieste de uma Nação Civilizada ( A França ) e das oficinas da Ansonia, trazendo um título de Nobreza, mesmo assim, resolveste fixar residência, no modesto Sítio Sabiá, exatamente em 12 de setembro de 1943.

1.970.000 vezes baterás, às 24 horas de hoje, quando completarás o seu trigésimo aniversário.

Sem nenhuma manifestação de cansaço, de enfado ou má vontade, trabalhas ininterruptamente por três décadas.

Teu rosto onividente, mais parece a abóbora celeste, com limites infinitos, onde o pensamento se perde nas noites do passado, e onde nossa imaginação, por mais que busque a verdade, jamais conseguirá desvendar os mistérios do futuro.

Sentinela discreto, assististes a todos os episódios de uma trajetória.

Ouvistes as arrogâncias de vozes desafinadas ou dissonantes dos mais diversos personagens dos teus amos, sem que, por hábito, aumentasse ou diminuísse a vibração do teu badalar.

Ouvistes a algazarra de crianças brincando, o labor cotidiano dos que trabalhavam e o sono tranqüilo de um Lar Feliz.

Cumpriste o teu dever de servo indormido, numa autêntica e perfeita initerrupção dos tique-taques durante trinta anos de serviços prestados.

1) Ouviste choro de infante,
Ouviste grito de bravo,
Ouviste grito de escravo,
Ouviste a todo instante,
Ouviste, mesmo durante,
O desabrochar de um cravo.

2) Ouviste grito de trem,
Ouviste tanta risada,
Ouviste a meninada,
Ouviste grande também,
Ouviste como ninguém,
Tanta história contada.

3) Ouviste riso estridente,
Ouviste choro abafado,
Ouviste chamar amado,
Ouviste pinho dolente,
Ouviste falar a gente,
Do passado e do presente.

4) Ouviste quando a ferver,
Ouviste café chiando,
Ouviste pano cuando,
Ouviste gente a beber,
Ouviste gente a dizer,
Tome a louça vá lavando.

5) Ouviste lata se abrindo,
Ouviste gente a cheirar,
Ouviste gente a espirrar,
Ouviste rapé caindo,
Ouviste tum-tum infindo,
Se o pilão estava pilando.

6) Ouviste soprar a brasa,
Ouviste milho estalando,
Ouviste café torrando,
Ouviste o dono da casa,
Ouviste dizer que atrasa,
O café que está cheirando.

7) Ouviste chorar alguém,
Ouviste chorar quem vai,
Ouviste chorar quem cai,
Ouviste chorar quem vem,
Ouviste chorar também,
Tantos filhos junto ao pai.

8) Ouviste quebrar a barra,
Ouviste a brisa d´aurora,
Ouviste gente indo embora,
Ouviste mão que se agarra,
Ouviste a triste cigarra,
Que se canta a gente chora.

9) Ouviste lenço acenando,
Ouviste lágrima caindo,
Ouviste lágrima sorrindo,
Ouviste gente abraçando,
Ouviste gente dançando,
Alegre se divertindo.

10) Ouviste tanta seresta,
Ouviste tanta modinha,
Ouviste voz de quem vinha,
Ouviste quem vem da festa,
Ouviste roncar em sesta,
Na ressaca da farrinha.

11) Ouviste alegre o campina,
Ouviste o guriatã,
Ouviste maracanã,
Ouviste vouo de rapina,
Ouviste em doce matina,
Um sabiá de manhã.

12) Ouviste vassoura andando,
Ouviste porta rangindo,
Ouviste janela abrir,
Ouviste pano espanando,
Ouviste voz reclamando,
De tanto pó a sair.

13) Ouviste mão que afaga,
Ouviste lábio que beija,
Ouviste quem bem almeja,
Ouviste perdão que apaga,
Ouviste quem propaga,
Pelo bem que se deseja.

14) Ouviste um doce rougo,
Ouviste pedir trabalho,
Ouviste jogar baralho,
Ouviste, acabe este jogo,
Ouviste beirando ao fogo,
Eu controlo e não falho.

15) Ouviste sou quem sabe,
Ouviste aqui pra nós,
Ouvistes, bem, estamos sós,
Ouviste isto me cabe,
Ouviste isto não há de,
Suceder para pior.

16) Ouviste rezando gente,
Ouviste bela oração,
Ouviste a Renovação,
Ouviste quanto era crente,
Ouviste quanto era ardente,
Tanta fé no coração.

17) Ouviste café servindo,
Ouviste em roda à mesa,
Ouviste tenho certeza,
Ouviste bolo partindo,
Ouviste alegre e rindo,
A gente da redondeza.

18) Ouviste arroz nascendo,
Ouviste arroz limpando,
Ouviste arroz embuchando,
Ouviste arroz crescendo,
Ouviste arroz colhendo,
Com tanta moça cantando.

19) Ouviste estalo de linha,
Ouviste a tropa de burro,
Ouviste saudoso urro,
Ouviste a vaca mansinha,
Ouviste descer galinha,
Do poleiro ainda escuro.

20) Ouviste bode a berrar,
Ouviste cão a latir,
Ouviste vaca a mugir,
Ouviste galo a cantar,
Ouviste gente acordar,
De manhã ao sol sair.

21) Ouviste dançar Reizado,
Ouviste mateu glosando,
Ouviste o rei dançando,
Ouviste cântico rimado,
Ouviste um boi zangado,
No terreiro se espalhando.

22) Ouviste na farinhada,
Ouviste moça rapando,
Ouviste bola rodando,
Ouviste massa empinhada,
Ouviste a rapaziada,
Puxando roda e cantando.

23) Ouviste rouca buzina,
Ouviste carro passando,
Ouviste caixa arriando,
Ouviste caixa franzina,
Ouviste peça de usina,
E chapas descarregando.

24) Ouviste queixa de alguém,
Ouviste gemar com dor,
Ouviste falar de amor,
Ouviste o que não convém
Ouviste falar de bem,
Como quem fala da flor.

25) Ouviste gemido forte,
Ouviste rezar baixinho,
Ouviste alguém pedindo,
Ouviste choro de morte,
Ouviste apelando a sorte,
Pra sempre se despedindo.

26) Ouviste nosso passado,
Ouviste nosso presente,
Ouviste desejo ardente,
Ouviste plano sonhado,
Ouviste sempre acordado,
Os sonhos de nossa gente.

27) Ouviste porque negar,
Ouviste foste Cortez,
Ouviste e quanta vez,
Ouviste a badalar,
Ouviste sem propalar,
Conveniente talvez.

28) Ouviste meu velho amigo,
Ouviste o meu sexteto,
Ouviste sobre o coreto,
Ouviste falar contigo?
Ouviste como eu digo,
Mesmo sendo indiscreto?

29) Ouviste mesmo, se es surdo?
Ouviste, conto a verdade.
Ouviste o que nos invade?
Ouviste meu pobre mudo.
Ouviste pois ouves tudo,
E eu sinto esta saudade.

Harry Sabiá. 1919 - 2000

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